terça-feira, 21 de abril de 2020

Um lugar que ninguém mais conhece.


Nunca antes – ao menos não nessa vida -, eu havia mergulhado em águas tão cristalinas. Nesse lugar que só eu conheço, um rio profundo e inerte vive, com a força de tudo aquilo que é animado. Contemplo esse rio profundo, cristalino, que repousa entre duas altas paredes de terra laranja. E mesmo que suas águas não se movimentem, eu posso sentir que ele pulsa. Ele pulsa comigo. Azul. E cristalino. E mais azul. Não sei explicar como.

Tudo nesse rio me convida ao mergulho. E eu vou, como se dele fizesse parte. No meu corpo, corre uma alegria profunda como ele. Uma alegria de contentamento. Uma alegria de “finalmente, tudo está bem”. Alegria de que somos, o rio e eu. Um.

Sua profundidade não me assusta. Eu fluo por ele com a delicadeza de uma barbatana. Mais que isso: eu fluo por ele como se seu movimento fosse o meu. Eu sou a força que o move. E logo ele se desfaz daquela primeira característica com a qual se apresentou a mim... Imóvel, inerte. Vivemos, um no outro. Eu, rio. Ele, eu.

- Ninguém mais conhece esse lugar. – sorrio. Sou rio.

sábado, 18 de abril de 2020

Pode se achegar.


Ela o chamou para entrar, ainda que dividida entre o pedido do corpo e a preocupação da mente. A casa vivia uma bagunça desde dezembro. Mas não era hora de se preocupar. Esperou, sem saber, por essa visita há tanto tempo que algumas roupas no chão e xícaras sujas de café não impediriam que ele, finalmente, entrasse.

- Pode se achegar. - Ela disse, sorrindo.

Recolheu as roupas do chão, aquelas que conseguiu ver, com os olhos apressados. Pôs as xícaras na pia e, mais do que depressa, juntou os papeis espalhados sobre a mesa. Eram os seus últimos rascunhos de textos, ainda esperando por qualquer significado. De amor, quem sabe.

- Esses são os seus escritos? – ele perguntou.
- Tentativas frustradas, eu diria. – ela respondeu.

Ele pediu, com os olhos, permissão para lê-los e ali se demorou. Não piscava enquanto lia. Enquanto a lia. Foi quando ela reparou como num frame, o quanto ele cabia bem naquele espaço. Naquela cadeira de segunda mão. Naquela mesa desgastada pelo tempo em que ela, todos os dias, se debruçava e entregava um pouco de si, à caneta. Mal sabe ele que, se assim quisesse, ela se entregaria novamente. Nua e inteira, a ele, nas próximas horas. Ou nos próximos anos.

[Texto inspirado na canção "Pode Se Achegar".]